A Igreja Martin Luther
e a III Avenida Perimetral de
Porto Alegre
Razões para a preservação deste patrimônio Porto Alegrense
Briane Panitz Bicca,
Coordenadora de cultura do escritório da UNESCO no Brasil
HISTÓRICO E CONCEITO DE VALOR
O presente arrazoado refere-se à antiga
Igreja Martin Luther, situada à Rua D. Pedro II e atingida pela abertura da III Avenida
Perimetral de Porto Alegre.
Tendo sido inaugurada em 1936, a Igreja
Martin Luther serviu às finalidades para as quais foi criada até os anos 70; naquela
década construiu-se um novo templo, situado em rua próxima. A partir daí a igreja
antiga foi sendo relegada ao descaso, chegando, nos primeiros anos da década de 80, ao
ponto de ser ameaçada de demolição, com o argumento da necessidade de ampliar o
ginásio coberto da escola anexa.
Naquela época diante da iminente perda do
momento, a comunidade luterana se organizou, granjeou apoios, fez debates e não só foi
vitoriosa, conseguindo salvar o prédio, como, por meio de uma campanha, reuniu os meios
para sua reforma e adaptação para sala de concertos.
As pesquisas realizadas naquela ocasião
mostraram tratar-se de uma das primeiras obras de arquitetura moderna no Estado, tendo seu
autor, o arquiteto Siegfried Costa, projetado outras igrejas, a maioria em estilo
neo-gótico, mais ao gosto de um público avesso à modernidade da Igreja Martin Luther.
Evidenciou-se, ser esta uma proposta arquitetônica de caráter inovador, devido aos seus
volumes construídos claramente definidos, sua torre recuada. O emprego de um único
material - o tijolo - e a quase completa ausência de omatos. A efervescência do
movimento modernista na arquitetura, tão bem representado pela escola da Bauhaus, havia
deitado raízes nas concepções de Costa, recém chegado de estudos na Alemanha, para o
qual a igrejinha representou uma oportunidade de expressão privilegiada.
Nesse processo de resgate da
"igrejinha" ficou patente que parte significativa da comunidade tomou, à partir
dai, consciência da sua representatividade para o bairro, e a reconheceu como símbolo
dessa parte da cidade.
À época a Comissão do Patrimônio do
Município e o IPHAN se manifestaram favoráveis à sua conservação mas a proposta de
tombamento municipal, inexplicavelmente, não prosperou.
Na verdade, esta mobilização da
comunidade é a única responsável por esta igreja ainda se encontrar de pé, numa
demonstração inequívoca da afetividade que ela desperta em muitos que com ela
conviveram e convivem. Pois, quantos foram os porto-alegrenses que ali se casaram,
batizaram e casaram seus filhos? Quantos, ao longo de mais de meio século, a tomaram como
ponto de referência na sua circulação pelo bairro?
Hoje, se reconhece que o valor afetivo
coletivo é fruto da convivência de uma determinada comunidade com os objetos que lhe
são caros; provêm da sua relação com as pessoas, do seu valor de uso, das lembranças
que suscita, dos pensamentos que desencadeia, da sensação de pertencer que provoca, da
segurança proporcionada pelos pontos de referência que acompanham uma pessoa desde a
infância; também disso é feita uma cidade.
Não se trata de um valor abstrato, como
se poderia argumentar a respeito do valor artístico: mas sim de um valor de humanidade.
Este foi um dos eixos da política desenvolvida por Marilena Chauí na sua gestão à
frente da Secretaria da Cultura da Cidade de São Paulo, quando preservou e restaurou
inúmeros bens caros à população.
Na caso da igrejinha, independentemente de
credo, trata de um local de reunião cuja construção, nos anos trinta, só foi possível
pelo esforço conjunto dos paroquianos, isto um decênio antes do traçado da perimetral,
quando nada havia na vizinhança. Seu valor; por conseguinte, vai muito além da simples
"pedra e cal". Seu significado se vê reforçado ainda mais diante da carência
de elementos e espaços representativo na bairro.
Desde os tempos em que a D. Pedro II era
uma tranqüila rua de bairro onde se jogava bola, onde tinha lugar a mais famosa corrida
de "carinhos de lomba" da cidade, até hoje, quando por ali trafegam milhares de
veículos, a igrejinha foi e continua sendo um elemento de identificação e de
orientação, marcando o início do pronunciado declive rumo à Av. Benjamim Constant.
CUSTO/BENEFICIO DA PRESERVAÇÃO
Hoje, a prioridade da proteção e da
conservação do patrimônio cultural com respeito a outros interesses, também
legítimos, é ampla e universalmente aceita, a ponto de não existirem mais
controvérsias a respeito do seu valor inestimável e insubstituível. Ao contrário
disso, no mundo inteiro cresce a valorização dos bens culturais. Povos que viram o seu
patrimônio ser destruído - como foi o caso da Polônia, na segunda guerra, cuja capital,
Varsóvia, teve seu centro histórico devastado - na falta do autêntico, apelaram para a
reconstrução, na busca de reconstituir os significados perdidos que, nesse caso, eram
altamente simbólicos para a nação. No entanto, as cartas internacionais de
preservação, particularmente as da UNESCO, cujos conceitos balizam as atividades de
conservação e restauro, desaconselham essa atitude pois o patrimônio é matéria
única; perdeu-se a substância original, perde-se a coerência que faz dele um bem datado
no tempo e ancorado no lugar. Pela mesma razão, desaconselha-se o desmonte e o
deslocamento de edifícios antigos.
A importância crescente conferida ao
patrimônio histórico pela sua capacidade de criar identidade, passou gradativamente a
lhe conferir valor econômico. Mensurar esse valor apresenta evidentes dificuldades devido
o mesmo, via de regra, estar à margem do mercado imobiliário. Para tanto, os organismos
de financiamento se viram obrigados a desenvolver métodos sofisticados de avaliação,
tendo em vista as especificidades do "produto".
Entre estes, o método de avaliação
contingente, que por meio de pesquisa direta mensura quanto uma comunidade se disporia a
pagar para poder continua a usufruir de um determinado bem cultural ou ainda o método do
valor agregado, por meio do qual se afere a valorização imobiliária ocorrida após a
restauração de um determinado imóvel ou revitalização de uma área urbana degradada.
No Brasil, estes procedimentos estão
sendo aplicados nas avaliações do "Programa de Revitalização do patrimônio
Cultural", do Ministério da Cultura, voltado para a melhoria das condições de
conservação de importantes cidades históricas brasileiras, entre as quais Olinda,
Salvador e Ouro Preto. Aquele Ministério está negociando junto ao Banco Interamericano
de Desenvolvimento -BID o financiamento de recursos que irão se somar as dotações
federais, estaduais e municipais, num amplo programa de preservação acervo cultural
brasileiro, incluindo o reforço dos orgãos de preservação nacionais e locais, tudo com
o objetivo de garantir a permanência do patrimônio a longo prazo.
Constata-se, por conseguinte, que o
reconhecimento do patrimônio como riqueza tem feito com que os bancos de desenvolvimento
concebam matrizes de avaliação econômica de custo/beneficio da preservação do
patrimônio cultural para poderem justificar os recursos empregados na sua conservação,
o que, em algumas situações implica na quebra do conceito econômico tradicional de que
a opção de menor custo é sempre a melhor alternativa para uma obra. Passa-se a admitir
um outro parâmetro de julgamento na balança das decisões: a importância da
preservação de um bem cultural entendido este como a riqueza de uma cidade e de uma
nação.
Esta mudança de atitude deve-se, em
muito, ao reconhecimento de que priorizar acima de tudo a redução de custo de uma obra,
em detrimento de outros valores foi o que valeu a muitas grandes e medias cidades no mundo
a aridez e a ausência de significados que hoje as caracteriza, por terem sido
desfiguradas por obras viárias de grande porte. Deveu-se, também, ao reconhecimento das
vantagens de um sociedade consciente da sua trajetória e estabelecida sobre históricos.
Certamente, o organismo financiador da
obra da perimetral, não quererá repetir na Brasil um modelo, absolutamente ultrapassado,
sobretudo sendo copatrocinador de um programa de preservação do patrimônio brasileiro.
A Prefeitura de Porto Alegre, muito menos,
querera sacrificar um edifício tão reconhecido pela coletividade ao ponto da mesma se
ter organizado para garantir a sua permanência - o que acontece excepcionalmente - para
não destruir uns poucos edifícios, sem valor arquitetônico, nem tampouco afetivo. A
nova postura que vem se impondo na administração municipal, de respeito ao cidadão e à
cidade, apontam na direção aposta.
De outro lado, o argumento do acréscimo
no custo em que implica a decisão de fazer-se um desvio na trajetória da perimetral para
manter de pé a igrejinha se vê minimizado pelo fato do reembolso do financiamento para a
execução da obra viária dar-se no largo prazo, vis-à-vis os benefícios permanentes da
preservação da igrejinha.
CONCLUSÃO
Inventariando quanto Porto Alegre já
perdeu das suas características ambientais, fica patente a absoluta necessidade de
guardar e valorizar o que restou da avalanche predatória de algumas administrações
passadas, sem sensibilidade para reconhecer e valorizar a sua beleza, caminharam para
fazer dela uma cidade despersonalizada.
Felizmente, os três últimos governos
municipais vem revertendo este quadro, em beneficio da identidade da cidade, tendo, entre
outras ações, adquirido e dado uso digno às extraordinárias casas Torelli e Godoi, na
avenida Independência, uma das mais tradicionais da cidade. Esta sim, trata-se de uma
política urbanística que corresponde a uma nova visão da cidade, respeitosa da
história dos seus bairros e das especificidades de cada um deles.
Finalizando, para que uma obra da
envergadura da III Perimetral possa ser verdadeiramente significativa para a cidade,
precisam ser estabelecidos compromissos não só com a máxima funcionalidade mas, na
mesma medida, com o bem-estar psíquico da população, que vai ser obrigada a enfrentar a
drástica mudança de caráter do bairro e conviver com ela; respeitar os sinais da
identidade desse bairro irá, sem dúvida, amenizar a força do impacto dessa mudança
sobre os moradores e transeuntes, de forma que estes encontrem na Igrejinha um sinal de
transição entre o passado e a nova realidade, daquilo que foi no que virá a ser.
Do acima exposto, evidenciam-se razões de
sobra para a preservação e valorização da igrejinha Martin Luther e, certamente, a
sensibilidade da Administração Municipal irá guiá-la ao encontro de uma solução que,
acreditamos, expressará o desejo e será motivo de alegria para todos.
Briane Panitz Bicca,
Coordenadora de cultura do escritório da UNESCO no Brasil
Brasília, 10 de maio de 1998. |