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A IGREJA MARTIN LUTHER
RAZÕES PARA SEU TOMBAMENTO
Arq. Günter Weimer. |
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A década de 1930 foi muito
importante para o desenvolvimento brasileiro. A revolução modernizada que colocaria
Getúlio Vargas no poder, acabaria por romper com o tradicional equilíbrio de poder
exercido pelos cafeicultores paulistas e mineiros, levando o país a enveredar pelos
caminhos da modernização industrial e da reforma da estrutura do aparato administrativo
estatal. Novas leis sobre as relações de trabalho, a previdência social, a
regulamentação profissional, etc., foram conquistas daquela época e marcariam
definitivamente a vida nacional. |
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Estas conquistas, no entanto, não
foram obtidas de imediato. As elites tradicionais criaram sérios obstáculos e as crises
institucionais foram constantes. Á chamada "Revolução constitucionalista" de
1932, e ao golpe do Estado Novo, a nível interno se contrapunham problemas de ordem
internacional como a grande crise econômica e a ascensão política da externa direita.
Por isto mesmo as conquistas modernizadoras só puderam ser conquistadas com muitas lutas
contra o conservadorismo imperante.
Ao nível da arquitetura são por demais conhecidos os sérios problemas enfrentados
a nível federal com a "affaire" do projeto ao prédio do Ministério da
Educação e Cultura. Um concurso nacional de anteprojetos teve que ser anulado sob
veementes protestos dos conservadores. Um novo projeto modernista só pode ser aprovado
após receber o aval internacional de uma das maiores expressões da arquitetura mundial
na pessoa de Lê Corbusier.
Estes fatos já são do conhecimento público e fazem parte da história do modernismo
brasileiro. Porém, o que é bem menos conhecido - o que se explica pela pouca
divulgação da história da arquitetura regional - é que temos um exemplar de
arquitetura que precedeu às discussões na Capital Federal e que foi inaugurado no ano em
que eles foram deflagradas: a Igreja Martin Luther, situada na esquina da rua Dom Pedro II
com a rua Américo Vespúcio.
Sua história está ligada a grande expansão que a cidade estava vivendo naqueles tempos.
Os estreitos limites dos bairros São João e Navegantes já começavam a se tornar
insuficientes e extravasavam para os lados da Floresta. A transferência de parte da
SOGIPA para aquele bairro e, a disposição em construir a Vila do IAPI, valorizaram
aquelas terras e adjacências. Foi certamente com interesses comerciais que a firma
Schilling e Kuss comprou as terras que se estenderam ao longo das atuais ruas Dom Pedro II
e Carlos Gomes, para loteá-las.
Deve ter sido com intenções comerciais de valorizar as terras que resolveram doar um
terreno à Comunidade Evangélica de Porto Alegre um terreno, sob a condição de que
construíssem imediatamente uma igreja. O terreno era dos piores possíveis, porém,
"de cavalo dado não se olham os dentes". A Comunidade resolveu aceitar a
oferta e contratou um jovem arquiteto que acabara de voltar de seus estudos de Darmstadt,
na Alemanha. Chamava-se Siegfried Bertholt Costa que, na época, tinha 21 anos. Era esta a
grande chance que todo o principiante espera. Costa atirou-se do corpo e alma a este
projeto que marcaria definitivamente a passagem da arquitetura eclética para a moderna.
Para expor este acontecimento, é necessário voltar um pouco atrás.
Costa nascera em Estrela, RS, onde seu pai, um imigrante austríaco casado com a filha de
um pastor evangélico aqui nascida, tinha uma próspera fábrica de sabão. Amizades
pessoais de seu pai com o arquiteto Theo Wiederspahn que estava revolucionando a Capital
com seus projetos audaciosos (como a Delegacia Fiscal, hoje MARGS, os Correios e
Telégrafos, a cervejaria Brahma, o edifício Ely, uma série de sedes bancárias das
quais ainda existe a sede do Banco Meridional, só para citar os prédios mais
importantes) devem ter despertado nela a vontade de aprender este ofício. Após completar
seus estudos secundários na Escola Alemã, hoje conhecida como Colégio Farroupilha,
Costa se voltaria a Wiederspahn que se encarregaria de sua preparação para ingressar
numa Faculdade de Arquitetura alemã já que aqui não havia possibilidade de prosseguir
em seus estudos. Após praticar o desenho técnico durante um ano com o chefe do
escritório de Wiederspahn, o arquiteto Franz Filsigner e de outro ano como auxiliar nas
obras do Hotel Majestic, hoje Casa de Cultura Mário Quintana, Costa seguiu para Darmstadt
onde se matriculou na faculdade em abril de 1929.
O grande talento apresentado pelo jovem brasileiro logo chamou a atenção do professor
Jean Hubert Pinand que criara fama por seus projetos revolucionários de igrejas e que,
por tais feitos, fora condecorado pelo próprio Papa. A amizade que o ligou ao mestre,
fizeram com que Pinand o levasse para Mainz após sua formatura e onde faz um estudo
avançado em urbanismo, que hoje denominaríamos de pós-graduação.
Esta fase foi extremamente difícil para a Alemanha. Em 1930 Hitler subiu ao poder e
passou a dificultar a vida das universidades que lhe opunham crescente oposição. Ao
fanatismo nazista, os universitários respondiam com um racionalismo radical que iria
condicionar profundamente o projeto da igreja Martin Luther.
Este movimento racionalista que receberia o nome de "nova objetividade"
atinha-se a um funcionalismo cujas raízes se prendiam ao movimento da Werkbund de
Muthesius que foi buscar sua inspiração no funcionalismo das "Artes e
Ofícios" inglês. Impossível deixar de perceber a influência de William Morris e
de sua "Casa Vermelha" nesta igreja. No projeto, tudo tinha de ser
minuciosamente justificado. Nada podia ficar por conta do acaso. Toda vinculação com as
formas do passado deveriam ser eliminadas. As novas formas arquitetônicas haveria de
nascer de uma sadia elaboração mental.
Vejamos como esta teoria foi aplicada ao projeto em apreço. O terreno apresentava um
desnível de mais 4 metros em relação à rua. A comunidade não disponha dinheiro para
fazer um aterro. Houve dificuldade até mesmo para fazer uma precária terraplanagem que
reduziu o desnível para pouco menos de 4 metros. Ali seria necessário implantar um
programa misto de igreja, escola e residência do pastor. A solução proposta foi uma
plataforma ao nível de rua sobre a qual se levantaria a igreja e abaixo da qual seriam
construídas as salas de aula. A residência do pastor seria complementada num partido em
L. No encontro das massas, na parte posterior do templo, seria implantada a torre. Este
partido era por demais revolucionário. Jamais se tivera notícias de uma igreja que não
tivesse a torre frontal em disposição simétrica. (Para efeitos de comparação
lembraria que a esta época estavam sendo construídas ou recém consagradas as igrejas de
S. Pedro, N.S. Piedade, N.S. da Glória, S. José e a Catedral Metropolitana). A
justificativa para uma colocação tão inusitada da torre era de ordem funcional,
plástica e urbanística. Colocando-se o elemento vertical afastado da rua, a composição
favorecia a perspectiva: a torre seria plenamente perceptível de qualquer ponto do tecido
urbano; se os sinos ficassem junto à sacristia, não haveria necessidade de atravessar a
nave e perturbar o culto para tocá-los. Se o sacristão ficasse junto ao oficiante, a
comunicação entre ambos seria mais fácil e direta; se os sinos ficassem afastados da
porta da igreja melhorariam as condições para que o pastor pudesse se despedir de seus
paroquianos, ao fim do culto, e isto favoreceria o congraçamento dos fieis na saída do
templo. Se a torre ficasse junto à residência do pastor, este não precisaria sair de
casa para tocar os sinos nos dias de semana e, principalmente, nos dias de chuva. Por
outro lado, o acesso à igreja poderia ser feito através da própria torre.
Plasticamente o conjunto seria igualmente revolucionário. Nada tinha de passadista ainda
que a fachada principal fosse marcada por uma porta de ares goticistas. Quando indagamos o
velho mestre porque havia colocado uma porta gótica numa construção tão moderna para a
época, ele contestou contrariado que jamais pensara em goticismos: foram razões
exclusivamente construtivas que haviam levado aquela solução que jamais poderiam ser
confundidas com imitações historicistas. Alguns esboços no papel demonstraram que nossa
suposição carecia de fundamentos. Segundo ele, o arco apontado fora uma imposição da
mecânica das construções.
Além da porta, esta fachada era totalmente vedada: era um grande painel retangular ornado
exclusivamente pela caprichosa disposição dos tijolos. Aliás, toda a construção seria
de tijolo à vista, o que levou a sérios rumores contra o arquiteto devido a seu projeto
de uma obra "inacabada". Como mudar os tempos! Se esta obra estivesse em S.
Paulo, com certeza, ela estaria sendo glorificada como sendo precursora do
"brutalismo".
A iluminação, ampla e profusa, provinha de uma ritmada seqüência de janelas laterais
sem qualquer alusão as formas consagradas. Em vez dos tradicionais vitrôs de vidros
coloridos com representações de cenas bíblicas, vidros martelados em tons pastel
"para favorecer a concentração". A concepção nitidamente geométrica do
volume da igreja e da torre com perfeito marcação dos materiais, tijolo e concreto,
mostram as simpatias do autor pelo movimento cubista. Em vez do "inevitável"
rendilhada de uma torre apontada, uma massa compacta com poucos filetes verticais em vidro
para a plena iluminação das escadarias. Na parte superior, os sinos na disposição mais
livre possível para a mais perfeita preparação do som. Por cobertura, uma simples laje
de concreto encimada pelo símbolo universal do cristianismo. Tudo reduzido ao essencial
com completa rejeição ao dispensável.
A verdade é que este projeto marcaria época. Até mesmo seu antigo mestre, Theo
Wiederspahn, adotaria o mesmo partido da igreja de Canela e até correntes mais
conservadoras com as que levaram à igreja de Ascensão em Novo Hamburgo, acabaram por
aceitar este partido que, pela força de sua evidência, acabou por ser instituído como
um modismo entre as igrejas protestante de então.
Em fins de julho de 1936 desembarcou no Rio de Janeiro o pioneiro da arquitetura moderna
Lê Corbusier para assessorar uma equipe de arquitetos brasileiros que iriam projetar o
edifício o MEC. Durante um mês e meio permaneceu no Brasil. Se o mestre tivesse vindo
para Porto Alegre em vez do Rio de Janeiro, talvez, teria sido convidado para a
inauguração da igreja Martin Luther em julho daquele ano. Neste caso, certamente teria
dado todo o apoio para esta obra revolucionária. Certamente ela não foi concebida dentro
dos postulados corbuseanos mas nem por isto ela deixa de ser de uma modernidade que só um
jovem de muita audácia poderia propor numa província então ainda arraigada à
tradição como o Rio Grande daqueles tempos. Uma obra que, se estivesse na Europa, já
teria renome internacional.
Por tudo isto, julgamos ser a absolutamente imprescindível acionar todos os mecanismos
possíveis para preservar esta obra que corre os mais sérios riscos de eminente
demolição. A casa do pastor já foi sacrificada para dar lugar a uma construção sem
maiores méritos arquitetônicos. Tapumes ameaçadores prenunciam a demolição próxima,
apesar de ofertas beneméritas do filho do pastor que construiu a igreja, de recuperá-la.
Não podemos permitir que pessoas, mesmo que bem intencionadas, mas sem os devidos
conhecimentos venham a destruir um patrimônio que, sem dúvida, está aí para valorizar
nossa cidade e que se constitui um marco histórico de maior importância em nossa
valorização cultural. |
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